terça-feira, fevereiro 14, 2006

A Nave (um conto velhinho)

Foi numa das minhas longas viagens que eu a conheci. Avancei muito para além da paisagem familiar dos meus passeios, numa manhã em que o sol e o azul do céu convidavam à aventura.

Estava plenamente consciente da realidade do meu voo para outras paragens, mas nem por isso me sentia apreensiva. Deixei que os novos caminhos se estabelecessem sem reservas da minha parte e, quando dei por mim, estava na aldeia.

Levada pelo aparecimento súbito do sentido de sobrevivência, bem depressa pensei que era loucura não voltar para trás. Mas, por muitas ordens que eu desse, nenhum átomo me obedecia e eu vagueava por horizontes novos.

Tinha a minha imaginação em festa e, apesar dos perigos que os arbustos e certos recantos escondiam, estava feliz.

Não lembro quantas voltas dei, olhando com pouca atenção a eira e os campos em redor. Saboreava a satisfação plena, a beleza de saber-me leve e poder deslizar sem esforço, fazendo curvas segundo uma linha imaginária e imutável.

Era só eu e era livre.

Por fim, surgiu um pequenino momento de regresso a uma maior consciência do manto verde, com retalhos de granito, por baixo de mim. Olhei com olhos de ver e a solidão e a tristeza daquela que, em breve, seria a menina dos meus olhos, levaram a que me aproximasse.

Ela tinha um rosto oval e bonito, os cabelos negros estavam presos numa trança que lhe caía pelas costas. Mas foram os seus olhos, de uma cor indefinida, que imediatamente me mostraram maravilhas.

Calçava sandálias de tiras de couro, vestia calças de ganga desbotadas pelo uso e uma camisola de algodão, de mangas curtas, com riscas vermelhas e azuis. E, para minha delícia, tinha a idade certa para eu poder falar-lhe e ela ouvir-me - era muito nova.

Estava sentada debaixo de uma oliveira, aproveitando a sombra. Mantinha-se um nadinha encostada ao tronco, deixando as suas pernas descansarem na terra macia.

Aproximei-me devagarinho e com ares de convidada. Ela viu-me e certamente achou natural que eu parasse a alguma distância dela. Olhou para mim durante um bocadinho, depois estendeu uma das mãos na minha direcção e mexeu os dedos. Talvez ela esperasse que eu me afastasse, mas não me mexi. Em seguida, ela pegou numa pedra pequenina e atirou-a para perto de mim, com cuidado. Só para lhe fazer a vontade, levantei num voo rasteiro, dei duas voltas e pousei novamente. Quando voltei a olhá-la, ela sorria-me maravilhada.

Foi assim que tudo começou. Naquele instante, ficamos ambas a saber que éramos amigas. E, ainda sorridente, ela começou a falar-me.

— O que é para sempre? Queria tanto conhecer o tempo de um para sempre. Para sempre, para sempre, para sempre, sempre, sempre...

E a minha amiga olhava-me, novamente, com vestígios de tristeza e de solidão. Mas só duraram uns segundos. Ela riu, abanou a cabeça e o sol brilhou outra vez.

Longo tempo me deixei estar assim, esquecendo-me de responder à pergunta que a linda menina me tinha feito. Até que, por fim, a resposta surgiu:

Deixei que todo o meu corpo se elevasse e parti à procura de luz para seguir, raios de sol filtrados por farrapos de nuvens. Deixei-me simplesmente ser... para correr por entre astros cintilantes, feitos de sonho e de beleza, no corpo de cristal que é estrela e nave. Meu refúgio sob as tuas asas, minha morada... e ser casa pequenina, esfera que brinca e gira no céu azul. E correr. Parar. Correr, correr. Dançar no ar puro e leve, voar até ao infinito. E brilhar!... Sentir o meu coração agradecido pelos sonhos, pelo amor. Ser um com o universo. E ainda querer estar aqui e ser o corpo que dança, a nave que vagueia. Eu e todos. Eu. Inventar sempre novos caminhos. Seguir somente os passos da minha vontade. E ser totalmente na liberdade do voo. Ser essência e ser sonho. Ser feliz e, por momentos, ser para sempre!

O meu voo terminou. Dei um último giro, mais lento, e suavemente deslizei até ao chão.

Ela riu para mim, com lágrimas de felicidade nos seus olhos de cor indefinida. Depois levantou-se e começou a correr, voltando para casa. Uns passos à frente, parou por um bocadinho, atirou-me um beijo e disse:

— Agora já sei, obrigada!

Encontramo-nos durante muitas manhãs, à mesma hora. Ela estava sempre sentada debaixo da oliveira, à minha espera. Eu chegava, parava um pouco distante dela e olhávamo-nos. Depois, ela sorria-me e falava. Fazia perguntas difíceis, com ar de brincadeira. Ou então ria-se de mim, fazendo-me perguntas para as quais só ela conhecia as respostas. E eu também me divertia.

— Vou passar a rir como tu, sem fazer barulho. Se tu te ris assim, é porque é assim que deve ser...

Claro que não era. E eu não queria, de modo nenhum, perder o som cristalino das gargalhadas dela. Quando ela ria todo o mundo ganhava cor. Comigo isso era uma impossibilidade. Mas ria com ela, brilhando de contentamento.

Lembrarei para sempre como as minhas manhãs eram belas. Esperava ansiosa o nascer do sol. Cada raio de sol, do novo dia, trazia-me a alegria e o brilho dos olhos dela. E eu encontrava nas cores da manhã a sua presença, sentia no ressurgir da vida a sua vivacidade e tudo à minha volta evocava os seus movimentos, a maneira como ela se movia, quase dançando. E sempre, sempre a pureza do seu riso. Ela estava em todo o lado, era todo o meu mundo. Era a magia dela que fazia o mundo ser admirável. E quando eu deslizava no ar, sentia o seu carinho e o seu perfume. O meu mundo tinha sentido.

Cada encontro com ela apagava as memórias da sua ausência. E eu acreditava sempre tê-la conhecido. Ela era eu e eu era ela.

E dia após dia foi-se consumindo o Verão. Mas eu gostei ainda mais do mundo com as cores de Outubro. Ela falava-me do aroma intenso e agradável das maçãs, do anis e da cidreira a secarem ao sol, agora suave e aconchegante. Contava-me histórias de pés descalços na terra lavrada, húmida e macia. Dizia-me que com o vento que soprava de Oeste, viria tempo húmido e chuvoso. Mandava-me proteger do vento do Norte, que agora traria tempo muito frio.

À nossa volta, misturados com um restinho de Verão que não queria morrer, havia bocadinhos de Inverno nascidos prematuramente. Mas era ainda o tempo da magia, o mundo das cores multifacetadas, dos aromas fortes, dos sons renovados e dos sentidos completamente despertos. E a minha feiticeirinha brilhava, também ela, com as cores de Outubro.

E foi assim durante muito tempo, até que outro tempo surgiu.

Não lamento o dia em que separei os átomos do meu corpo, passando a ter apenas o tamanho de um grão de pó, mas onde todo o meu ser se concentrara. Assim teve que ser, para eu poder acompanhar a minha linda menina na sua partida para terras distantes.

Estive sempre com ela. Falei-lhe noite após noite, mas o seu conhecimento de mim perdera-se e ela já não me ouvia. Se ela pudesse encontrar-me, ver que eu estive sempre lá...

Fui a cor clara do sol da manhã, despertando-a. Fui a água que brinca e ri, no rio onde ela mergulhava. Fui a sombra no seu corpo, ao meio dia. Fui a areia branca e quente a seus pés, na praia infindável. Fui a carícia do vento nos seus cabelos. Fui as cores do pôr do sol e os reflexos nos seus olhos. Fui brilho na noite estelar, só para ela.
E foi assim até ao fim.

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