Trata-se de um texto antigo, que eu escrevi e publiquei noutro site, há milhares de anos:
«Beckett falou-nos da realidade do homem moderno, sem absoluto, sem Deus, completamente desamparado num universo hostil, desprovido de qualquer sentido. Se Sartre e Camus nos apresentaram ao absurdo, Beckett foi mais longe, atirou-nos bem lá para dentro. A sensação de estranheza, que Camus explora, é transformada na mais profunda solidão no universo Beckettiano. O herói Beckettiano é a expressão máxima do homem-matéria, mas uma matéria em decomposição, nauseabunda.
Beckett pinta nas suas telas as palavras da aproximação à morte, da infelicidade, da decadência física. Cegos, paralíticos, enfermos, mutilados. Galeria de mortos. É este o universo Beckettiano.
Beckett mostra-nos naquilo que ele diz ser a nossa verdadeira natureza: seres frágeis, incapazes de assumirmos a solidão, buscando ridiculamente companhia, iludindo-nos com tentativas de comunicação mesmo quando já não é possível qualquer comunicação, tentando fugir à dor e caindo no desespero... Enfim, Beckett vai ao mais fundo de nós e mostra-nos a nossa desesperada esperança... ainda e sempre à espera de Godot - Deus, alguém ou algo para nos aliviar o sofrimento físico e moral - mas o tão esperado Godot não vem, nunca vem.
Que mais queres que te diga? Há uma frase do livro "Malone está a morrer" que eu sei de cor: "pouco importa que eu tenha nascido ou não, que eu tenha vivido ou não, que esteja morto ou só moribundo, farei como sempre fiz, na ignorância do que faço, de quem sou, de onde sou ou se sou". Não, não é uma maldição. É a puta da realidade. Isto, meu querido, é o abismo das certezas ou da ausência delas. Tanto faz. Isto é o deserto. Mas quem é que quer o deserto? Então, sintamos. E quando acharmos que já nada sentimos, esforçamo-nos e sentimos ainda mais intensamente. Paradoxal? Mas o que é que não é paradoxal? :)
Beckett dá-nos uma perspectiva oposta à de Ionesco, no sentido em que as personagens beckettianas tornam-se cada vez mais decadentes, mais desesperadas e mais angustiadas. Nos últimos textos de beckett, especialmente em "Sobressaltos", somos atirados para o fundo do poço. Aqui a solidão e o desespero aproximam-se da loucura... de uma loucura incómoda e contagiante.
Nem imaginas como me senti assombrada durante dias depois de ler esse texto. Ainda agora, de vez em quando, a minha realidade é quebrada e eu sinto que sou transportada para esse argumento denso e absurdo. E simplesmente vejo-me a mim própria a levantar-me e ir... e sinto o intenso fascínio e a forte repulsa que provocam as personagens de Beckett, como Vladimir e Estragon.
Beckett, o homem que coloca uma das suas personagens a dizer, referindo-se à mãe, "aquela que me deu a noite". A noite e não o dia. Para beckett nascer é a maior de todas as infelicidade, nascer não é receber o dia e a luz, mas sim a noite e as trevas.
Beckett define a condição humana do seguinte modo: "nascemos, sofremos, morremos". Mas, ao mesmo tempo, afirma que nada é mais cómico do que a infelicidade. Sim, a revolta, o riso, a loucura nunca deixam de estar presentes. Que mais? Céus, como Beckett ridiculariza o amor, chama-lhe o instinto de procriação. E as suas personagens têm profunda aversão a isso de a vida simplesmente continuar. Pois, beckett foi o homem que olhou para as criancinhas e disse: "os procriadores em potência".
Diz-me: estranhas que eu leia Beckett? Bem, ele foi simplesmente genial. Sabes, o teatro dele foi designado (entre milhares de outros termos) por ateatro, no sentido em que é um teatro completamente novo, ainda que paradoxalmente mantenha uma forte identidade com o teatro tradicional. Ou com o nonsense. Hmm, permite-me uma pequena citação de memória... :)
- Todas as vozes mortas.
- Isso faz ruído de asas.
- De folhas.
- De areia.»
Ah! Aqui há uma mudança: já não leio Beckett, estou demasiado ocupada a viver cada um dos meus instantes, deste agora que me faz feliz! :)
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