Anteontem, quando saía do trabalho, ainda embrenhada nos meus pensamentos sobre questões laborais, senti o impacto do cheiro da terra quente e molhada. Apanhou-me desprevenida. Agarrou-me e abanou-me no meu entorpecimento do dia a dia, no meu sonambulismo próprio desta minha vida quotidiana, onde milhares de pensamentos povoam a minha mente a cada instante, onde me permito viver infinitos passados e futuros - e nenhum presente.
Se dissesse que foi uma espécie de epifania - mutatis mutandis -, nem sequer exagerava muito. Mas não vou dizer nada disso. ;) Contudo, não posso deixar de referir a intensa sensação de deslumbramento. Mais tarde, tive percepção que isso se deveu apenas a ter realmente estado lá, a ter vivido de facto aquele instante, o presente. Durante um momento, nada mais importou, era como se nada mais existisse a não ser aquele preciso instante. E, na verdade, nada mais existe... nada, a não ser precisos e preciosos instantes.
Não é de modo nenhum a primeira vez que isto me acontece, parece-me até que é um tipo de acontecimento mais ou menos recorrente. Lembro-me, a título de exemplo, do último eclipse lunar, em que vivi algo similar. O momento em que saí do carro no alto da montanha, onde fui talvez para me sentir mais perto do céu... e, claro!, o eclipse lunar que pareceu materializar-se à minha frente. Que posso eu dizer? A tal sensação de despertar. É o que eu sinto nesses momentos. Há indiscutivelmente o deslumbramento e a forte sensação de estar desperta, como nunca me parece que estou.
Lembrei-me agora de um velho filme, do qual me apetece falar um bocadinho. Pois é! Creio que já quase me tinha deixado deste vício de dizer o que me vai na alma. Mas parece que há vícios que nunca morrem. De resto, também não me parece que seja preciso justificar-me. ;)
O sabor da cereja, de Kiarostami. Foi um filme que me marcou bastante, há uns anos atrás, pela temática da depressão profunda. O filme começa por nos mostrar um homem num carro, às voltas numa estrada de terra batida numa paisagem árida. Bom, com um bocadinho de boa vontade, podemos concluir que o personagem anda às voltas num deserto. Que procura? Na verdade, procura muitas coisas... mas, naquele momento, concentra-se em algo específico: procura alguém que lhe tape o buraco que ele fez e onde se vai deitar para morrer um destes dias. Sim, alguém que vá ao buraco dele quando ele estiver morto e que o tape, somente isso. Mas parece que ninguém quer aceitar... Fica a questão: porque é que ele ainda se preocupa com algo tão absurdo? Eu acho que é simplesmente porque a morte planeada é tão violenta que, se não nos concentrarmos em pequenos pormenores que nos afastem mentalmente do nosso objectivo, se calhar não só não a conseguimos realizar, como ainda perdemos definitivamente a sanidade mental.
No filme (estou a contá-lo de memória, vi-o há 7 ou 8 anos, de modo que há coisas que podem falhar) há outro momento importante: ele encontra um homem que finalmente decide ajudá-lo, mas antes quer contar-lhe uma história: um suicida afasta-se de casa de madrugada, pára junto a uma árvore e sobe para prender a corda com que irá enforcar-se. Ao prender a corda, sente nas mãos algo macio, com um cheiro intenso, apercebe-se que é fruta e leva-a à boca. Cerejas (ou amoras). E o homem deixa-se estar um bocadinho, a saborear as cerejas... entretanto, o sol começa a nascer. E é esse o momento de revelação, o momento em que os sentidos que pareciam estar entorpecidos, voltam em pleno. E com o presente, com o agora, acordamos. Ao acordarmos, a sensação de que a vida é absolutamente maravilhosa é inevitável.
Lembro-me que na altura fiquei fascinada. Também eu penso que é sempre a vida que se revela. Aquilo que nos salva e que nos devolve a nós próprios é algo que sempre esteve lá, algo que nunca perdemos verdadeiramente... a própria vida, feita de pequeninos instantes.
Só um outro momento do filme: o fim. O filme tem um final verdadeiramente assombroso e, na minha opinião, perfeito. O homem deita-se no seu buraco para morrer e o filme acaba. Mas acaba precisamente mostrando-nos imagens da equipa de realização, do actor a confraternizar... e não será um pouco assim também na vida? Não estaremos de certa forma a representar também um papel, do qual já não sabemos sair é certo, mas ainda assim e só um papel...
Talvez só estejamos verdadeiramente vivos quando estamos realmente no presente, sem passados e sem futuros. Sem máscaras e sem personagens... a sós, agora.
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