sexta-feira, março 08, 2019

O sabor da cereja

O Sabor da Cereja, de Kiarostami, 1997.

Foi um filme que me marcou bastante, há muitos anos (e do qual estou a falar de memória), pela temática da depressão profunda. Apresenta-nos um homem completamente desligado. Um homem que deixou de sentir a natureza, a passagem das estações, a própria vida... O filme começa, então, por nos mostrar esse homem num carro, às voltas numa estrada de terra batida, numa paisagem árida.

O que vemos é sempre através da nossa visão muito particular, é tudo uma questão de perspectiva e, nesse contexto, eu vejo um homem às voltas num deserto. Que procura? Na verdade, procura muitas coisas...

SPOILER ALERT!

Há dois momentos no filme que quero relembrar: o instante em que nos contam a história do suicida que se afasta de casa de madrugada, pára junto a uma árvore e sobe para prender a corda com que irá enforcar-se. Ao prender a corda, sente nas mãos algo macio, com um cheiro intenso, apercebe-se que é fruta e leva-a à boca: cerejas (ou amoras). O homem deixa-se estar um bocadinho, a saborear as cerejas. Entretanto, o sol começa a nascer. E é esse o momento de revelação, o momento em que os sentidos que pareciam estar entorpecidos, voltam em pleno. Com o presente, com o agora, ele acorda.

Não foi o mundo que se modificou, foi a visão dele do mundo... Esse conto mostra-nos que é sempre a vida que se revela. Aquilo que nos salva e que nos devolve a nós próprios é algo que sempre esteve lá, algo que nunca perdemos verdadeiramente: a própria vida, feita de pequeninos instantes.

O segundo momento do filme que quero relembrar é o fim. O filme tem um final verdadeiramente assombroso e, na minha opinião, perfeito. O filme acaba precisamente mostrando-nos imagens da equipa de realização, do actor a confraternizar... E não será um pouco assim também na vida? Não estaremos de certa forma a representar também um papel, do qual muitas vezes já não sabemos sair é certo, mas ainda assim só um papel.

Há uma interpretação de mecânica quântica, da qual eu gosto particularmente: a teoria de muitos mundos, de Hugh Everett. De certa forma, seria um pouco como se a realidade fosse uma sobreposição quântica de infinitos universos paralelos não comunicantes. Nesta formulação da realidade, cada vez que seguimos numa determinada direção, é criado um universo paralelo onde seguimos na direção oposta. Nesse contexto, ser um santo ou um pecador teria a mesma importância, isto é, nenhuma. Bem, eu não acredito verdadeiramente nisto, mas gosto de me lembrar, de vez em quando, que os papeis que desempenhamos, bons ou maus, podem não passar disso mesmo: de papéis.

Talvez só estejamos verdadeiramente vivos quando estamos realmente no presente, sem passados e sem futuros. Sem máscaras e sem personagens, a sós com algo que só encontramos num curto instante: agora.

Bem, mesmo sendo um filme sobre um suicida, todo feito à volta da vontade dele de se matar, há neste filme algo mais, uma espécie de beliscão, que nos acorda para a vida.


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